A
Revelação©
Lépido, ele subia os degraus da
escada quando a perna vergou depois de uma fisgada no joelho. Achou que era um
sintoma de artrite. “Mas artrite é doença de velho”, pensou discordando do auto-diagnóstico.
Completou a escalada, entrou em casa e foi direto mirar-se no espelho do
banheiro para confirmar a suspeita. “Hum... que artrite qual nada!”
Passaram-se
uns poucos anos de boa forma mental e física e ele esqueceu o incidente. Num
belo dia acordou de madrugada, no final do filme da “Sessão da Madrugada”. Opa!
já é três da madrugada. Não consegui ver todo o filme e a sessão da madrugada
já está terminando. Onde é que vai a energia que me mantinha acordado às
sextas? Levantou-se da poltrona e foi para o banheiro. Acendeu a luz e deu uma
boa olhada no rosto. “Caramba! Não é que estás parecido com o teu velho pai na
idade em que ele não agüentava mais passar das dez da noite?”, indagou da
fisionomia refletida no espelho, convencendo-se que não entrara precocemente na
terceira idade. Mas ficou desconfiado. Lembrou das fotografias que o genro
tirara recentemente numa reunião familiar, por ocasião do último Natal.
Foi
pegar as fotos e na medida em que as observava, comparava a sua aparência com a
de cada uma das que estavam nelas. Um dos genros já possuía algumas cãs e a
neta mais velha posava ao lado do marido. Estava calor e ele vestia uma
camiseta cavada que lhe permitia ver as pelancas dos braços refletidas no
espelho do banheiro, para onde fora a fim de confirmar que já a ultrapassara a
terceira idade e já era um velho olhando agora para os seus próprios olhos.
Começou um diálogo com o espelho: “E por que não percebi isso antes?”. Então assumiu
que aquela nova aparência resolvera-se aos poucos sobre ele como o vai-e-vem da
maré que apaga as inscrições sobre a areia molhada da praia: “Foram-se todos os
vestígios da mocidade!”, concluiu finalmente e sorriu tentando ser cômico e zombador
daquela imagem à sua frente vendo-a falar as mesmas palavras: Não olhavas para
o teu próprio rabo quando comentavas sobre o envelhecimento dos ostros!...”
Examinou
novamente as fotografias do último Natal e depois encontrou outra, tirada há
sessenta anos atrás, quando ele era então um garotinho como os dois netos mais
novos que agora contemplava na foto mais recente, colorida, comparando-a com a
outra em preto-e-branco, totalmente amarelada pelo tempo. Suspirou ao pensar
que no futuro também em seus netos desapareceriam os vestígios da meninice, e
depois os da mocidade e, por último, da faze áurea da geratividade, que ocorre
antes da velhice insolente a refletir-se no espelho. Largou as fotos e voltou a
encarar, sisudo sua imagem no espelho. Depois alargou um novo sorriso, agora carregado
de paz. E voltou a falar com a imagem: “Devias ter começado a contagem
regressiva há vinte e sete anos atrás, quando começaste a demandar o céu onde
Jesus preparou a tua pousada eterna”. Sentiu sono ao gozar aquela paz. Despediu-se
da imagem: “É coroa!... Menos um dia para a partida!”. Deitou e dormiu sorrindo
o sono da eternidade.
©Carlos
Mendes
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