sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Crônicas

Excelência,
Por: Carlos Mendes


            O senhor já terá notado o incremento no número de carrinhos que circulam pelas nossas cidades, puxados por cidadãos que recolhem os recicláveis nas nossas lixeiras. Hoje eu fiquei abismado com o número de carrinhos que ultrapassei com o meu carro. O senhor sabe do que me lembrei, excelência? Dos indianos puxando os carrinhos que transportam pessoas. Lá eles carregam gente e aqui nós carregamos os recicláveis que separamos nas lixeiras. Seremos mais pobres do que eles, excelência? Ao longe avistei um que caminhava lentamente e quando o ultrapassei senti um aperto no coração. Ele parara e se assentara no meio fio para descansar. Era idoso e levava carga pesada. Pensei: “quanto lhe pagarão pela carga?” E como subsistirá se contrair uma hérnia? Terá um plano de saúde? Alguém que cuide dele se ficar doente?

            Achei que pensava demais quando avistei outro carrinho. No caminhar, a cabeça de quem o puxava subia e descia acima da carga. Ao ultrapassá-lo, vi que era uma mulher gorda que o puxava. Tinha uma perna mais curta do que a outra, excelência, e o dia do meu calvário tornava-se pleno dessas sofridas visões. Aí, excelência, como sou metido a inventor, logo bolei uma engenhoca para colocar como acessório em meu carro  para puxar os carrinhos dessa via-crúcis, imitando o cireneu que ajudou Jesus a carregar a cruz. Fui então assaltado pelo receio de o fato ser divulgado entre os puxadores de carrinhos. Como conseguiria rebocar uma composição com centenas deles? Excelência, eu fiquei muito indignado e decidi sugerir-lhe decretar a seguinte punição para os políticos corruptos: Puxarem pelas ruas esses carrinhos, como mulas desses nossos irmãos pobres.


NOTA DO AUTOR: Artigo com publicação repetida em tablóide da cidade de Ribeirão Pires. Coincidentemente, a cooperativa de catadores de recicláveis foi organizada nesta cidade. 


Coragem cívica amarelada
                                                        Carlos Mendes

Meu falecido avô contava uma velha história sobre a resposta de um soldado ao seu comandante, quando este o inquiriu sobre um ensinamento de bravura nas fileiras onde se debatiam com seus in inimigos: “É matar ou....”. O soldado, prestes ao seu batismo de fogo contra um poderoso exército inimigo respondeu: “ou correr”. Como assim!, bradou o capitão indignado. O soldado tremelicando confirmou o que o pavor lhe ditava do inconsciente: “Capitão, ou eu ma-a-to ou eu mo-o-rro...”. É isso aí soldado, responde o capitão. Agora repete bem alto pra todos aprenderem esse ensinamento de bravura. E o soldado obedeceu, trêmulo como vara verde: “É... ou eu corro pro mato ou eu corro pro morro”.
       Eu nasci nas últimas horas da véspera em que o conflito armado da revolução de 32 foi deflagrado. Meu pai era então feitor de um sítio de bananas às margens dos mangues ao norte do cais do porto de Santos. Ele era português de gênio estourado e contam que certa vez teve de atirar contra a cabeça de um peão fazendo a bala resvalar-lhe o couro cabeludo, sentado à mesa onde a minha mãe  servia as refeições. Os mal-encarados trabalhadores que cortavam os cachos das bananas e que os carregavam por longos caminhos até o embarque nas grandes chatas que os transportavam ao porto, andavam todos de facas grandes e afiadas à cinta e, como soe acontecer em tais meios, os seus olhares para o capataz, (neste caso, o meu pai, homem franzino na idade jovem), eram desafiadores. Por isso e por conselho do proprietário do sítio o meu pai andava sempre com arma à cintura.
       Mas vamos ao que interessa. Eclodiu a revolução de 32 e os agentes de recrutamento   alistaram nas fileiras revolucionárias alguns dos peões daquele sítio. Depois de poucos dias eles foram aparecendo, debandados das fileiras. À noite, dentro dos barracos onde dormiam, ouviam-se as lamúrias e os choros medrosos, pavores subliminares aflorando dos seus inconscientes.
   Dos tempos atuais posso registrar uma experiência muito parecida. Ou a velhice me trouxe a coragem ou eu sempre fui um corajoso e não sabia. Há três meses atrás comecei a coordenar um mídia eletrônico que o cerne da insatisfação popular fez expandir-se rapidamente, tendo chegado a mais de cem mil numa rede básica formada por outras a ela agregadas, que se comunicavam entre si, passando os ideais de limpeza na máquina pública e política. Pois bem, para que esfriasse o ardor do grande sonho que crepitava nos corações dos patriotas do grupo empenhado em livrar o país da corja de bandidos, bastou a quase confirmação de ter partido da liderança petista o plano para o assassinato de dois prefeitos.
    Dia destes pensei em assistir mais uma vez o filme “El Cid”, mas desisti. Desisti por revolta e vergonha ao lembrar-me da cena em que o famoso soldado e cavaleiro de nobreza pura, empunhando sua espada contra o campeão do Rei e seu futuro sogro, depois deste ter-lhe negado o pedido de desagravo à ofensa contra o velho pai do Cid, lhe disse: “Vejo que a coragem não está morta em Castela. Vá Rodrigo, que honra haverá para um campeão do rei em matá-lo?”, ao que O Cid respondeu: “Pode um homem viver sem honra?”.
   Que pena faltar-nos hoje em dia esse nobre sentimento de honra e de valor!