Por: Carlos Mendes
“Eis que o
semeador saiu a semear. E, quando semeava, uma parte da semente caiu ao pé do
caminho...” (Mateus 13:3b e 4)
I
Lembrava
do primeiro dia que voltou da escola para casa, cadernos e livros amarrados às
costas, calcanhares pisando forte na calçada de barro batido.
Entra
em casa, atravessa a sala e sobe a escada em caracol no mesmo ritmo acelerado e
forte, marcado pelos saltos de couro das botinas que o pai comprara para ele
estrear no primeiro dia de aulas. A mãe aparece entre os vãos dos balaústres
redondos de madeira que sustentam o corrimão.
— O que aconteceu
Carneiro? — pergunta preocupada, enxugando as mãos no avental.
Ele
estaca e se vira para a mãe agarrando furioso o corrimão da escada. Bate a
botina com força no degrau e desabafa:
— A senhora sabe
que eu me chamo Carneiro de Semente!
Depois
do desabafo se senta no degrau, coloca o rosto entre os braços cruzados sobre
os joelhos e começa a chorar.
Carneiro
tinha chegado das andanças a pé pelos campos ao redor de Ponta Grossa. Estava
tão cansado que sentou um pouco no primeiro degrau da pequena escada por onde
se entrava na tosca cabana que tinha construído nos arrabaldes da cidade, num
vilarinho com apenas dez casas construídas em terrenos grandes, separados por
cercas de arame farpado. As propriedades nos arrabaldes do pequeno e principal
núcleo residencial e comercial de Ponta Grossa , cidade mais rural do que
urbana, eram de pouco valor. Enquanto descansava ele pensava naqueles idos da
infância, olhar fixado no descampado a sua frente e no céu sem nuvens e sem
aves voejando. A paisagem também era pobre e só oferecia a visão daquele campo
desbotado e coberto por capim rasteiro, respingado pelo barro roxo e seco,
imóvel pela calmaria que já durava meses. O que conseguia ver, negava-lhe um
motivo que fosse para justificar o meio sorriso e o olhar ausente que emprestavam
feição de paz e alegria ao rosto daquele jovem sentado no primeiro degrau de
quem subia a escada de entrada da sua modesta cabana de madeira.
Lembrava
do pai, responsável pela escolha do seu nome de batismo. Os pais tinham morrido
quando ele era ainda menino. O trabalho
excessivo e os poucos recursos para tratamento do impaludismo lhes ceifaram a
vida muito cedo.
Mas
quando aprendeu a cumprir o vaticínio do próprio nome, Carneiro de Semente se
tornou uma pessoa feliz. Não se tornou feliz apesar do nome, mas em função
dele.
“Carneiro
de semente”, pensou abrindo a alma em regozijo, pois naquele dia ele havia
estabelecido contato com duas famílias de camponeses alemães, cujos chefes se
encontravam em casa, descansando durante a calma do dia.
“Bom
dia”, ou “Boa tarde”, dizia ele em alta voz chamando a atenção de quem o avistava
nos terrenos que os colonos separavam dentro da propriedade da fazenda, onde construíam
as suas casas. Geralmente a resposta lhe era oferecida pela dona da casa, ou
uma das filhas a estender as roupas no varal, a cuidar da horta ou a jogar
ração para as galinhas caipiras:
— O que deseja,
moço?
— O patrão está?
— Tá não, moço —
era a resposta predominante em certos dias da semana.
Carneiro
de Semente tinha que seguir caminhando muitos quilômetros montado a sua
cavalgadura por longas estradas de barro que serviam as herdades aos colonos,
pedindo a Deus que na próxima parada encontrasse o chefe da casa, pois não era
decente para um homem sem companhia feminina entrar em casa de família quando o
chefe não estava.
Calculou
que havia coberto mais de trinta quilômetros naquele dia. “Eram os ossos do
ofício de um evangelista”, pensou Carneiro.
II
O domingo
chegou trazendo os colonos para a cidade. Ali naquele pequeno centro comercial
de Ponta Grossa eles faziam as compras dos suprimentos que abasteciam as suas
dispensas. Os que moravam em herdades mais distantes faziam suas compras uma
vez por mês, pois além da maior distância que tinham de cobrir com as carroças
puxadas por parelhas de bois, as estradas de barro eram mal conservadas.
A
cidade enchia-se dessas carroças, e enquanto as mulheres colocavam em dia os
assuntos da semana ou do mês, durante as demoradas conversas dentro dos
armazéns de abastecimento, os maridos iam jogar malha nas quadras construídas
perto dos bares que procuravam para se embriagar, especialmente com o chope.
Dentro dos bares os colonos jogavam cartas e conversavam animadamente enquanto
bebiam o chope. Outros, em menor número, mas tão barulhentos quanto os demais,
reuniam-se junto às mesas de bilhar.
Carneiro
de Semente não fugia a regra dessa freqüência aos domingos na cidade, ainda sem
igreja evangélica para os serviços de culto. Era bem recebido nas rodas que os
homens formavam para as distrações, apesar da sobriedade revelada pela sua
completa abstinência ao álcool, aos jogos e aos gracejos irresponsáveis.
Pensava como o apóstolo Paulo: “Execrava o pecado, mas amava os pecadores” e de
tal forma, que os queria ganhar para Cristo, não o incomodando o que as suas
incredulidades faziam com os seus costumes e falares.
— Chega até aqui, ó
Carneiro de Semente — chamou um camponês sentado à uma mesa a jogar sueca com
outros colonos.
Carneiro
de Semente puxou uma cadeira para a vaga entre o homem que o convidara e um dos
seus visinhos.
Às
vezes acontecia haver no grupo quem o hostilizasse grosseiramente,
desagradando-se da aproximação do convidado. Quando isso acontecia, Carneiro de
Semente ia cumprimentar quem o tinha chamado e se afastava em seguida, pedindo
desculpa por não poder se reunir ao grupo. Mas a maioria dos fazendeiros e
trabalhadores rurais de Ponta Grossa conheciam aquele moço extremamente educado,
que sabia ser afável com todos, mas sabia se comportar com reservas diante de
manifestações de desagrado pela sua aproximação. E faziam prevalecer o respeito
devido a moço tão sociável e culto, constrangendo quem o hostilizava a
procurá-lo para o pedido de desculpas e a confirmação do convite que lhe faziam
para reunir-se ao grupo.
Carneiro
de Semente era proseador acatado. Quem conhecia a sua lide de evangelista sabia
que durante a semana era essa a sua única ocupação, pesando a seu favor o fato
de jamais alguém o ter encontrado em casa durante o dia. E quem o visitasse a
noite ou o encontrava mergulhado nos estudos de teologia bíblica, ou orando ou
a ler o seu único livro de referência sobre as questões de fé em Deus: a Bíblia
Sagrada. Uns poucos camponeses já convertidos a Jesus o chamavam de “Semeador”,
título que quadrava bem com a linguagem usada naquela próspera região agrícola
do princípio do século dezenove. Quando um novo camponês tomava informações
sobre a ocupação daquele moço, quase que infalivelmente ouvia a mesma resposta
de algue´m que logo se antecipava a responder pelo Carneiro.:
— Ele é semeador.
Mas
nos dias de folga dos camponeses, Carneiro de Semente ia para a cidade como um
semeador que também estivesse de folga, o que acabou melhorando ainda mais a
estima que lhe dedicavam.
— Diz-me cá uma
coisa, semeador — começou a perguntar o chefe da estação de trem, parceiro de
jogo do camponês que o havia convidado para sentar-se com eles — o telegrafista
de Deus pode entregar uma mensagem no seu dia de folga?
— Pode — respondeu
Carneiro de Semente.
O
chefe da estação fora criado com uma família de judeus, e conhecia bem as
prescrições da Torá sobre o dia de descanso para o povo escolhido.
— Isso não é
transgredir a lei de Deus?
Carneiro
de Semente conhecia a integridade de quem lhe pedia esclarecimentos. Notou que
os outros três jogadores de sueca também demonstravam interesse pela resposta.
— A Bíblia diz que
Jesus é o Senhor do sábado e que não reprovou os seus discípulos quando
arrancaram espigas para saciar a fome que sentiam num desses dias... (Mt
12:1-5)
— Desculpa-me a
interrupção — disse um camponês abaixando as suas cartas sobre a mesa. — Mas
qual é a relação entre comer e receber uma mensagem?
— Uma mensagem
recebida de Deus é alimento para a alma — respondeu Carneiro de Semente,
aproveitando para recalcar um ensinamento bíblico.
— Mas não foi Jesus
que arrancou as espigas... — falou reticente o chefe da estação enquanto
escolhia uma carta para descartar sobre a mesa.
— É verdade, mas o
pé cá está com as espigas, se precisares arrancar uma neste dia de descanso...
Diante
do silêncio geral o chefe da estação jogou sobre a mesa a carta do descarte.
Depois olhou para o seu parceiro de jogo e notou que o encorajava. Carneiro de
Semente e a roda de jogadores perceberam que aqueles parceiros compartilhavam
algum segredo que tinha íntima relação com a pergunta do chefe da estação.
— Toda Ponta Grossa
reconhece que eu sou um bom chefe de estação...
As
primeiras palavras que foram proferidas pareciam conter embaraços insuperáveis.
O chefe da estação pigarreou, largou sobre a mesa as cartas que restaram após o
descarte e entrou resoluto no âmago da questão:
— Eu estou diante
de um grande dilema... Burlei o concurso que me concedeu a chefia da estação de
trem — seu rosto avermelhou-se de vergonha. — Lhes confesso isso porque estou
convencido que devo atender as rígidas exigências morais do evangelho que o
Semeador nos tem ensinado... — Depois de uma breve hesitação, continuou: — mas
também receio prejudicar a minha mulher e filhos se perder o emprego.
Todos
olharam para o Semeador. Haveria uma resposta da Bíblia para o caso? Carneiro
de Semente puxou um minúsculo evangelho do bolso, abriu-o numa atitude que os
meios sorrisos e entreolhares entre o grupo dos homens ali reunidos denotavam
aguardar. Leu a passagem que narrava o encontro de Jesus com um chefe de
publicanos chamado Zaqueu. Depois passou para as suas conclusões sobre o texto
lido:
— Zaqueu era chefe
dos publicanos ou coletores dos impostos. E na Palestina os funcionários
públicos sob suas ordens eram considerados ladrões, devendo o mesmo conceito
recair sobre o seu chefe em
Jericó. Mas essa condição de ladrão é apenas um aspecto do
pecado no homem. Quando Jesus se ofereceu para ser hóspede na casa de Zaquel,
este percebeu que podia almejar ser amigo do “Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo”, e isto apesar de sua condição de publicano. Como vocês
puderam perceber pela passagem que eu li, Zaqueu ficou extremamente satisfeito
com o oferecimento de Jesus. E por que ele teria ficado tão contente?... —
Carneiro de Semente aguardou por uma possível reposta e vendo que ninguém
atinava com um motivo, concluiu: — Zaqueu sabia que aquela amizade lhe valia o
perdão e a salvação de Deus. Embriagado por essa alegria ele afirmou então que
passaria a viver de maneira diferente e Jesus o declarou salvo, atestando com
isso a sinceridade das palavras de Zaquel. (1)
Carneiro de Semente olhava com simpatia
para as fisionomias daqueles homens simples do campo. Amava essa simplicidade
porque ela sobrepujava a insolente presunção do saber humano. Gostava de semear
naqueles campos porque neles era possível a segadura de frutos espirituais
abundantes.
Mas precisava concluir o ensinamento
bíblico que interessava diretamente ao chefe do correio.
— Que providências
Zaquel tomou depois disso para arrumar a sua vida, não se sabe. A Bíblia não se
perde em detalhes que podem facilmente ser concluídos por quem entende as
exigências de uma vida de retidão diante de Deus.
A resposta
O
chefe da estação planejava arrumar a sua vida. Teria de começar pelo reparo da
cadeia de danos causados pela sua fraude? Um homem foi prejudicado por ela e
isso lhe causava o incômodo remorso que reclamava reparação dos danos
cometidos. Até onde se estenderia essa cadeia desses danos? Quem tinha sido
prejudicado podia agora ter mulher, filhos e netos vivendo na indigência por
causa do seu ato pecaminoso..
Naquela
noite leu e releu a passagem bíblica do encontro de Zaqueu com Jesus e começou
a desejar saber quem era Jesus. Primeiro ele descobriu que Jesus era “Filho do
homem”, no que se assemelhava a ele. O chefe da estação sentiu-se esperançoso
por poder tratar o seu assunto com Deus, de homem para homem. Pediu então
perdão para Deus reconhecendo finalmente o ensinamento que muitas vezes tinha
ouvido da boca de Cordeiro de Semente, que sempre afirmou que Deus ouve àqueles
que crêem que Jesus veio do céu para “buscar e salvar o que se havia perdido”.
Depois
da oração cessaram as aflições provocadas pelo remorso de ter prejudicado um
homem com a fraude que cometeu.
No
dia seguinte acordou cedo, antes mesmo da mulher que costumava precede-lo a fim
de preparar-lhe o desjejum. Gozava de uma nova disposição. Os temores de perder
a boa posição alcançada pelo cargo de chefe da estação de Ponta Grossa tinham
desaparecido. Comunicou para a mulher que iria até Curitiba pois tinha assunto
urgente para tratar com a direção da estrada de ferro.
Antes
de embarcar no primeiro trem, telegrafou para a Capital do estado acertando um
encontro com o seu engenheiro-chefe. Depois passou algumas instruções para o
seu subordinado na chefia da estação que ocuparia o seu lugar no comando.
O relatório
No
prédio onde funcionava a direção da estrada de ferro em Curitiba o chefe da
estação de Ponta Grossa encontrou antigos colegas. Na medida em que os
encontrava, ele os saudava com entusiasmo e estes apresentavam outros colegas
muito jovens, alguns já ocupando cargos de chefia na administração da estrada
de ferro. “Era a renovação chegando”,
pensou ele subindo a escadaria que o levaria ao andar superior onde encontraria
o engenheiro-chefe da ferrovia. Este o aguardava e depois das apresentações e
saudações o fez sentar numa cadeira em frente da sua secretária. Uma pasta
volumosa estava sobre ela e o chefe da estação deteve o olhar sobre ela.
— É o seu dossiê —
disse o engenheiro — mandei que mo trouxessem quando marquei este encontro que
você pediu, pois o assunto poderia estar ligado à sua brilhante carreira de
ferroviário.
— Pode ser útil... — respondeu o chefe
de estação.
— Creio que você gostará de saber que
prestamos concurso no mesmo dia.
— Na ocasião a estrada de ferro também
estava recrutando pessoal para a direção? — perguntou o chefe de estação.
— Eu também concorri para a vaga de
chefe de estação. Mas perdi a última vaga para você.
“Então era o seu engenheiro-chefe que
tinha sido prejudicado com a sua farsa”, pensou o chefe de estação boquiaberto
e emudecido pela revelação.
— Mas acabei me saindo melhor do que
você. Eu estava concluindo o meu curso superior e o novo presidente da estrada
de ferro me convidou para assumir lugar na direção, pois o meu currículo era
condizente com as exigências do cargo que ele queria preencher. Além disso, ele
confiava na boa influência que as pessoas honestas transmitem para as próximas
gerações, pois conhecia bem o meu pai, maquinista antigo da estrada de ferro e
seu amigo íntimo.
O chefe de estação sorria de pura
satisfação e o engenheiro parecia interessado em saber por que. Contou-lhe
tudo. Inclusive a forma dolosa como se apropriara das questões que iriam cair
na prova, aproveitando-se da boa amizade do seu pai, descendente da primeira
geração formada pelos intrépidos maquinistas que desbravaram as regiões por
onde a ferrovia assentou os seus trilhos e que privava da amizade de
funcionários graduados da estrada de ferro. Depois concluiu:
— Vim pedir minha exoneração do cargo
que ocupo, pois não o mereço. Além disso, alguém deve ter sido prejudicado por
mim.
— Eu fui o único que ficou sem a vaga de
chefe de estação — disse-lhe o engenheiro com gravidade. — Vou encaminhar o seu
pedido à presidência da companhia, mas, se me permitir, recomendarei o perdão
da falta, pois o que a estrada de ferro mais precisa é de chefes de estação
honestos.
O novo lugar
O chefe de estação voltou para Ponta
Grossa na condição de chefe de estação re-contratado, pois havia sido exonerado
pela falta cometida e readmitido por indicação do engenheiro-chefe. Reassumiu a
chefia da estação de trens e assumiu o lugar que Cristo lhe tinha reservado no
seu redil.
O seu antigo dossiê, maculado pela marca
do pecado, foi destruído. Quanto ao novo, o Espírito Santo de Deus certamente
providenciaria para que permanecesse sem mácula até ao dia em que Cristo o viesse
buscar.
(1)
Lucas 19:1-10
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