Os cocoricares da solidariedade
Carlos Mendes
De um cercado com meio metro
quadrado soou o cocoricar de um galo de
briga de azas cortadas. Ele estava assim confinado dentro de um terreno mui grande, de proprietários de mentalidade pequena, e o seu cocoricar ganhou a dimensão de
um protesto contra a opressão.
Lá de cima, no alto do grande
outeiro dividido em diversas herdades, soou o cocoricó de um outro galo e os
cocoricós foram se sucedendo como vozes humanas. O galo confinado disse:
— Cocoricó, que
traduzido é: “que opressão!”.
O seu cocoricar soou como uma lamúria saindo, arfante,
pela goela.
— Cocoricó...! – respondeu o outro galo lá do
alto: “Contra qual opressão tu reclamas?”
Através de diversos cocoricares,
o galo opresso contou-lhe a desventura em que vivia.
E aos cocoricares do galo opresso
sucederam-se responsos do que estava acima, no grande outeiro.
— Cocoricó...,
instruiu ele à greve.
— Cocoricó..., “mas
que greve? Eu não boto ovos?”
— Cocoricó..., “Não
gale galinhas, que não haverão pintos, e depois frangos e frangas para engorda,
venda e lucro”
— Cocoricó..., “Os
meus donos me põem na panela”.
—
Cocoricó,
cocoricó, cocoricó... Do alto do outeiro o galo começou a discursar. Depois
voou sobre a cerca do galinheiro e foi fazer comício em outros galinheiros.
Um galo branco e velho demais
para ser vendido como frango no mercado internacional contemporizou:
— Cocoricó, que
traduzido é: “Há granjeiros que tratam bem os frangos de suas granjas”
A crista do galo revolucionário
avermelhou-se. Ele achava que podia contar com os frangos, que comiam felizes
as suas rações para engorda. Sacudiu a crista e a papada e vociferou:
— Cocoricó,
cocoricó, cocoricó!!! – acusando o velho galo branco de pelego e continuou o
seu cocoricar que virou um discurso inflamado a incitar os frangos à luta de
classe.
E aquele comer, que se constituíra até ali a agradável
liberdade dos galináceos que jamais chegariam a ser galos, se transformou
depressa numa revolta que alcançou todos os frangos de outras granjas, pregação
de desventura que também alcançou os galinheiros. Mas o galo branco e outros
galos verdadeiramente livres como ele continuaram vivendo felizes na liberdade
que a confiança lhes dera.
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