quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Fábula

Os cocoricares da solidariedade
Carlos Mendes

   De um cercado com meio metro quadrado soou o cocoricar de um  galo de briga de azas cortadas. Ele estava assim confinado dentro de um terreno mui grande, de proprietários de mentalidade pequena, e o seu cocoricar ganhou a dimensão de um protesto contra a opressão.
  Lá de cima, no alto do grande outeiro dividido em diversas herdades, soou o cocoricó de um outro galo e os cocoricós foram se sucedendo como vozes humanas. O galo confinado disse:
— Cocoricó, que traduzido é: “que opressão!”.
  O seu cocoricar soou como uma lamúria saindo, arfante, pela goela.
— Cocoricó...! – respondeu o outro galo lá do alto: “Contra qual opressão tu reclamas?”
 Através de diversos cocoricares, o galo opresso contou-lhe a desventura em que vivia.
 E aos cocoricares do galo opresso sucederam-se responsos do que estava acima, no grande outeiro.
— Cocoricó..., instruiu ele à greve.
— Cocoricó..., “mas que greve? Eu não boto ovos?”
— Cocoricó..., “Não gale galinhas, que não haverão pintos, e depois frangos e frangas para engorda, venda e lucro”
— Cocoricó..., “Os meus donos me põem na panela”.
—      Cocoricó, cocoricó, cocoricó... Do alto do outeiro o galo começou a discursar. Depois voou sobre a cerca do galinheiro e foi fazer comício em outros galinheiros.
  Um galo branco e velho demais para ser vendido como frango no mercado internacional contemporizou:
— Cocoricó, que traduzido é: “Há granjeiros que tratam bem os frangos de suas granjas”
  A crista do galo revolucionário avermelhou-se. Ele achava que podia contar com os frangos, que comiam felizes as suas rações para engorda. Sacudiu a crista e a papada e vociferou:
— Cocoricó, cocoricó, cocoricó!!! – acusando o velho galo branco de pelego e continuou o seu cocoricar que virou um discurso inflamado a incitar os frangos à luta de classe.

   E aquele comer, que se constituíra até ali a agradável liberdade dos galináceos que jamais chegariam a ser galos, se transformou depressa numa revolta que alcançou todos os frangos de outras granjas, pregação de desventura que também alcançou os galinheiros. Mas o galo branco e outros galos verdadeiramente livres como ele continuaram vivendo felizes na liberdade que a confiança  lhes dera.  

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