Conforme anunciado, estou postando um dos mais apreciados títulos de minha coleção de Contos, que em termos de vendas só perdeu para "Aconteceu Na Noite de Natal", lançado no Natal de 2.000.
Espero que o apreciem,
Carlos Mendes
Juvêncio e Miguel
A cara redonda, o cabelo curto, o olhar inocente e um sorriso permanente
na face convidavam o ataque da astúcia. A estatura elevada, a flatulência do
corpo e o jeito bonachão de tratar com as pessoas completavam a aparência de
cidadela desguarnecida.
Caia fácil no conto do bom emprego e se
alguma coisa não acontecesse ele continuaria carregando por muito tempo a
pesada mala de vendedor ambulante autônomo das quinquilharias sem utilidade
prática fabricadas por um industrial esperto que prometia grandes comissões que
jamais renderam qualquer lucro para alguém.
Passível de entusiasmos, os caçadores de
adeptos viviam a mudar-lhe as preferências. Saía certa feita de uma galeria no
centro da cidade quando duas mulheres o convenceram a comprar um amuleto,
persuadindo-o da boa sorte que lhe traria se o pendurasse ao pescoço.
Bisbilhotando-lhe as preferências, as espertinhas queriam saber que tipo de
sorte desejava: se mulheres, fama ou fortuna.
— Mulher eu não preciso porque me agrado da que tenho
em casa, que me deu cinco filhos saudáveis que eu tenho de sustentar e educar.
Por isso eu preciso vender bem toda a mercadoria que carrego nesta grande mala.
— Pois então, homem! Pendura esse amuleto no pescoço e
começa a frequentar as reuniões diárias onde os apóstolos abençoam os caminhos
da prosperidade.
Juvêncio viu que um homem alinhado, pé
encostado na coluna da porta de uma pastelaria que funcionava dentro da
galeria, lhe dirigia um persistente sinal com a mão direita, indicando que não
devia aceitar o que lhe estava sendo proposto. Devolveu o amuleto, mas custou a
se livrar das mulheres que se foram sem lhe devolver o dinheiro. “De certo
esqueceram”, pensou, propenso que era para desculpar as faltas alheias.
Olhou para o local onde vira o homem alinhado, mas ele já lá não estava.
Foi negociar na rua onde os
“marreteiros” armavam as suas barracas. Os mais prósperos que ali vendiam toda
sorte de bugigangas não se interessaram pelos artigos de baixa qualidade que
Juvêncio carregava na grande mala.
No final da fileira das barracas
encontrou um novo comerciante que tinha
armado a sua ao lado da que pertencia a um homem corpulento, braços e tórax
peludos se mostrando pela abertura da camisa e abaixo das mangas curtas.
Juvêncio tinha negociado com ele no dia anterior, vendendo-lhe a prazo todo o
conteúdo da mala. Viu que os dois comerciantes discutiam.
— Tu não vais vender essa mercadoria aqui - dizia o
homem peludo para o novo marreteiro, apontando para uns relógios coreanos
iguais aos que ele vendia na sua barraca.
Mas a aproximação de Juvêncio provocou uma trégua na disputa.
Imperativo, o homem peludo chamou para si a atenção “daquele bom fornecedor”.
— Deixa-me ver o que trazes hoje na tua mala -
disse-lhe o homem peludo e Juvêncio abriu a mala em cima da banca da sua
barraca, para ele examinar.
O homem lhe disse que a prazo comprava
tudo.
Muito animado Juvêncio se preparava para
descarregar o conteúdo da mala quando viu o homem alinhado que conheceu na
galeria lhe fazendo o mesmo sinal, acrescentando um outro que aconselhava venda
a dinheiro.
O homem peludo notou que o olhar de
Juvêncio se desviara e procurou saber o que lhe chamara a atenção.
— Esse cartaz já é velho e a droga do circo nunca mais
apareceu nesta cidade - disse ele achando
que “aquele fornecedor jóia” se interessara pelo conteúdo do cartaz.
Juvêncio voltou a olhar para o local
onde vira o homem alinhado, mas ele já não estava mais ali.
— Desculpe-me, mas hoje só lhe posso vender a dinheiro
- disse para o peludo que o olhou de alto a baixo e foi atender uma moça que
examinava um berloque.
O dono da nova barraca mostrou-lhe um
maço de notas novinhas e disse que comprava tudo no dinheiro e, ao encará-lo,
Juvêncio viu que por detrás dele o homem alinhado voltava a lhe fazer o mesmo
sinal que o havia impedido de agir por duas vezes e que acrescentava com sinais
labiais: “dinheiro falso”.
Completava uma semana de andanças a
procura de compradores para as mercadorias da mala. Cansado e faminto ele
entrou na estação rodoviária onde costumava comer um sanduíche de mortadela
enquanto descansava. Sentiu vontade de urinar e ia pedir a uma moça muito
maquiada e vestida com saia curta e apertada demais para vigiar a sua mala. Mas
o homem alinhado lá estava assentado ao lado dela, elegante e com as pernas cruzadas.
Acenava-lhe o dedo para não fazer o que estava pensando e movia os lábios num:
“é ladra”. Ele pegou a grande mala e foi com ela para o banheiro, passando a custo pela roleta depois de depositar nela uma moeda.
Quando saía da rodoviária um camelô o
abordou tentando vender-lhe um bilhete de loteria e ele olhou para os lados
procurando o homem alinhado para saber o que o aconselharia. Não o vendo, achou
que podia permanecer firme na resolução costumeira e disse para o camelô que
não comprava porque não tinha o costume de jogar.
O camelô aparentava uns trinta anos e se
trajava com roupas largas e claras que lhe assentavam bem no corpo magro e
alto. Guardava uma distância conveniente e gingava o corpo ao falar. Os sapatos
brancos que calçava emprestava graça aos seus remelexos. Agradou-se do rubor
facial que denotava a timidez daquele homenzarrão branquicento a quem
certamente venderia alguma coisa. Tirou dez bilhetes para ônibus e ofereceu-os
a Juvêncio por preço irrecusável, argumentando:
— Você deve andar muito de ônibus, não é?
— Puxa, e como! - respondeu Juvêncio enquanto o camelô
lhe enfiava os bilhetes no bolso da camisa.
Juvêncio tirava do bolso as últimas
moedas com que pagaria aqueles bem-vindos bilhetes, locomoção garantida para
mais cinco dias de trabalho no centro da cidade, quando viu o homem alinhado
parado na calçada oposta e a lhe fazer o costumeiro sinal que já o induzira a
diversas recusas naquele dia. Largou as moedas, tirou a mão do bolso e examinou
bem os bilhetes voltando a colocá-los no bolso. Olhou com reprovação para o
lugar onde vira o homem alinhado, mas ele não estava mais ali. Pagou o camelô
que contou as moedas e se retirou rápido.
As lojas começavam a fechar, as barracas
a serem desarmadas e Juvêncio a desiludir-se por mais um dia de trabalho
improdutivo. Vergado pelo peso da mala da qual não conseguira aliviar uma só
grama, ele caminhava para o ponto do ônibus que o levaria de volta para casa.
Chegando na praça de onde o ônibus partia, ele se assentou num banco para
descansar antes de tomar o seu lugar na fila que ainda era pequena porque o
pessoal do comércio e dos escritórios ainda não tinha começado a sair do
trabalho.
Um casal que lhe vendia literatura
religiosa o abordou:
— Esta semana a nossa revista traz uma reportagem muito
boa - disse o homem apontando para um dos títulos que a capa exibia: “O Que
Jeová Fala Sobre a Transfusão de Sangue”.
Juvêncio se preparava para lamentar a
falta de posses daquele dia quando viu novamente o homem alinhado. Estava
assentado noutro banco da praça e lhe recomendava novamente a recusa.
— Eu quase perdi um bom negócio hoje por causa do
senhor - disse para o homem com a sua natural delicadeza e surpreendendo o
casal à sua frente, que olhou para trás e não viu com quem poderia ele ter
falado. Juvêncio perguntou: - Posso levar a revista e pagar depois?
— Nós deixaremos uma reservada para você comprar amanhã
- respondeu a mulher se retirando com o seu acompanhante.
A fila do ônibus começava a esticar e
Juvêncio foi tomar o seu lugar nela.
Foi o décimo passageiro a chegar na
roleta. Pegou um dos bilhetes que havia comprado e entregou-o sorridente ao
cobrador que o olhou carrancudo.
— Tá querendo dar uma de espertinho, moço?
Juvêncio corou.
— Essa cara de inocente não combina...
— Calma seu cobrador - atalhou Juvêncio ainda mais
vermelho e colocando a pesada mala no assoalho - é a primeira vez que estou
pagando com um vale. O que ele tem de errado?
— Pode ir voltando por onde você entrou. Tem muita
gente querendo pagar e você está atrapalhando - disse o cobrador, talvez
irritado pelo cansaço.
— Por favor, o que há de errado com o meu bilhete?
— Está vencido, moço! Esse bilhete de cor rosa deixou
de circular no ano passado.
Juvêncio desceu. O vermelho do rosto
estava agora tisnado porque para ele concorria o cansaço e a vergonha que
jamais na vida enfrentara. Sentou novamente no banco da praça e viu o homem
alinhado assentado no mesmo lugar onde
estivera antes. “Parece o espelho da minha própria desilusão”, pensou Juvêncio.
“Será empatia que o faz sentir-se triste como eu estou? Teria assistido a minha
humilhação e solidariza-se comigo, ou...”
Juvêncio considerava a hipótese de o
homem ser o anjo Miguel de quem a revista que comprara do casal na semana
passada afirmava que, por ordem de Jeová, continuava agindo em socorro das
pessoas. Olhou novamente para o homem e viu que este balançava a cabeça em
sinal de perplexidade e reprovação.
— Então quem é o senhor? - perguntou Juvêncio no momento em que um grupo de
adolescentes vindos do Liceu onde estudavam cobriu-lhe a visão. Depois de
passarem ele não viu mais o homem alinhado. Mas um outro homem estava parado à
sua frente, pedindo-lhe permissão para sentar ao seu lado e conversar com ele
sobre o incidente no ônibus. Juvêncio corou e balbuciou acanhado:
— Isso nunca aconteceu comigo...
— Estou certo disso - afirmou o homem e continuou: -
Qualquer pessoa com um mínimo de
discernimento espiritual concordaria comigo ao tomá-lo por uma pessoa de bem,
que deve ter sido enganado por um dos muitos espertinhos que andam pelo centro
da cidade caçando a quem possam ludibriar.
— O senhor me viu comprando os passes?
— Não, mas já presenciei muitas malandragens cometidas
pelos desocupados e e preguiçosos.
O olhar inocente de Juvêncio comoveu o
homem e este deduziu que estava diante de alguém que desconhecia o que algumas
pessoas faziam a título de “aliviar”, como era a gíria corrente entre os
meliantes. Achou melhor respeitar aquela inocência, pois conhecia bem a quem
ela agradava. Devia harmonizar as palavras com o caráter puro daquele homem.
— Eu estava sentado em frente ao senhor quando o
casal procurava vender-lhe
a revista e orava pedindo a Deus uma oportunidade de lhe falar sobre Cristo.
— O senhor é crente? - perguntou Juvêncio e o homem
respondeu que sim. - Os crentes também vendem literatura?
— Não - respondeu o homem. - Nós gostamos mais de dar
uma Bíblia de presente para quem não a possui e a literatura que produzimos só
fala do que a Bíblia revela sobre Jesus.
Juvêncio percebeu a singeleza daquela fé
única, a qual satisfazia plenamente a sua expectativa sobrenatural.
— Eu acho que conheci o anjo Miguel - disse ele
contando a experiência daquele dia com o homem
alinhado.
— Ainda que os anjos sejam ministros de Deus, O
Todo-Poderoso prefere manifestar-se através de homens ou diretamente pelo Seu
Espírito Santo.
O homem contou a história bíblica sobre
Cornélio e depois sobre a conversão de Saulo de Tarso e acrescentou:
— No primeiro caso o apóstolo Pedro foi o instrumento
de Deus. Mas com Paulo foi a própria pessoa de Cristo que o chamou à
obediência. Eu acho que quem resolveu revelar o grande amor que Deus tem pelo
senhor foi o Espírito Santo de Deus, que é quem glorifica a Cristo no mundo.
— Então foi a Jesus que eu vi?
— Talvez o senhor tenha visto o Anjo do Senhor, que é
uma presença considerada como realidade de Cristo, personificando a ajuda da
parte de Deus para o senhor.
Juvêncio creu então em Cristo que
amorosamente se revelara para ele. Depois, discípulo ainda sem o conhecimento
das Sagradas Letras, a não ser o que se relacionava com a revelação suficiente,
falou do mesmo Cristo para a mulher e para os filhos e estes também creram.
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