Em
1921, Walter Benjamin escreveu um breve artigo que viria a público somente após
sua morte: O capitalismo como religião. Nele o filósofo acreditou ter decifrado
três das principais características da sociedade capitalista de seu tempo,
enquanto fenômeno intrinsecamente religioso.
O capitalismo seria, em primeiro lugar, uma religião
essencialmente cultual: o dinheiro, a riqueza, etc., representariam as
divindades às quais se deveria servir, impreterivelmente e sem vacilação.
Segundo: o culto preconizado pela religião capitalista não possuiria um dia ou
uma ocasião específica para sua realização: ele sreia permanente. E sobre isso
o filósofo afirmou: “Não há dia que não seja de festa, no terrível sentido da
ostentação sagrada, da tensão extrema que reside no adorador.” O terceiro
traço: o culto que esse sistema produziria seria culpabilizador e sem a
possibilidade de expiação. Como consequência, as pessoas s4eriam tomadas de um
desespero renitente e cruel, sem qualquer chance de redenção.
Ao travar, mais tarde, contato com a obra do húngaro
György Lukács, em 1924, o filósofo alemão acabou abandonando algumas daquelas
idéias. Ele aproximou-se do marxismo, deixou de condenar o capitalismo como
religião e passou a criticar o culto fetichista da mercadoria, analisando as
galerias parisienses como “templos do capital mercadológico”. Em nossos dias,
coube ao italiano Giorgio Agamben retomar e desenvolver algumas das antigas
reflexões benjaminianas sobre o capitalismo como religião, dando a elas uma
fundamentação um pouco onde subsiste a maioria das pessoas.
Para fundamentar teoricamente sua reflexão, o filósofo
serve-se dos escritos dos juristas romanos do passado, tema diferente.
É verdade, diz Agamben, que o capitalismo possui cultos,
que esses cultos são permanentes e que a culpabilização gerada não oferece
possibilidade de redenção. Mas o que é mais fundamental, e que justifica a
comparação do capitalismo com uma religião, é o fato de essa forma de
organização social estabelecer, em sua própria substância, uma cisão radical
que cria a esfera do sagrado em contraposição ao mundo meramente humano, este
em que é especialista. Na Roma antiga, afirma Agamben, “Sagradas ou religiosas
eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram
subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem
dadas como fiança, nem cedidas ao usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílégio
era todo ato que violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade,
que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram
denominadas propriamente ‘sagradas’) ou infernais (nesse caso eram simplesmente
chamadas ‘religiosas’).” (Agamben, 2007, p. 65)
Nestas reflexões, religião é, portanto, aquilo que retira
coisas, lugares, animais ou pessoas do contato com o vulgo e as transfere para
uma dimensão à parte da existência. Não há religião sem separação, e todo tipo
de separação feita nesses moldes contém algo de religioso (o dispositivo que
realiza a transposição de um determinado ente do mundo dos homens para as
regiões divinais é o sacrifício).
Muitas pessoas acreditam, explicou Agamben, que o termo
religio deriva de religare (isto é, o que une o humano e o divino), mas essa
relação não é verdadeira. Religio deriva, de fato, de relegere que significa
precisamente “a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as
relações com os deuses, a inquieta hesitação (o ‘reler’) perante as formas – e
as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o
sagrado e o profano” (ibid., 66). Religião, então, é exatamente aquilo que separa
(e reforça a distinção) entre os mundos humano e divino.
Por outro lado, o que em verdade supera a cisão entre
ambas as esferas não é a deferência em relação ao divino, e sim uma atitude de
“negligência” para com as normas que a religião estabelece. É essa atividade
que Agamben, na esteira dos juristas romanos, denomina de profanação: “Profanar
significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que
ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.” (ibid., 66)
Nesse sentido, explica o filósofo, uma das maneiras de se
fazer esse “uso particular” do sagrado e burlar o conjunto de normas que
realizam a separação entre humano e divino é a atividade lúdica, o jogo.
Conforme suas palavras:
“Brincar de roda era originalmente um rito matrimonial;
jogar com bola reproduz a luta dos deuses pela posse do sol; os jogos de azar
derivam de práticas oraculares; o pião e o jogo de xadrez eram instrumentos de
adivinhação. Ao analisar a relação entre jogo e rito, Émile Benveniste mostrou
que o jogo não só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo,
representa a sua inversão. A potência do ato sagrado – escreve ele – reside na
conjunção do mito que narra a história com o rito que a reproduz e a põe em
cena (grifo nosso). O jogo quebra essa unidade: como ludus, ou jogo de ação,
faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jocus, ou jogo de palavras, ele
cancela o rito e deixa sobreviver o mito. (…) Isso significa que o jogo libera
e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O
uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o
consumo utilitarista. Assim, a ‘profanação’ do jogo não tem a ver apenas com a
esfera religiosa. As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia
nas mãos, transformam em brinquedo o que pertence à esfera da economia, da
guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumadas a considerar
sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se
improvisadamente em brinquedos.” (ibid., 66-7)
Note-se, então, que no jogo, que é uma das formas
exemplares de profanação, as coisas são retiradas de suas relações costumeiras
e inseridas em novas relações completamente distintas das primeiras. Um objeto
com uma função específica, como por exemplo uma vassoura, pode virar, numa
brincadeira, um cavalo. Uma estrutura que envolve determinadas práticas sociais
e significados quebra-se para que outra venha à tona.
Contudo, diz Agamben, o “jogo como órgão da profanação
está em decadência em todo lugar” (ibid., 67). Em nossos dias, de “religião
capitalista”, os homens e mulheres já não tomam mais o jogo como meio de
restituir o sagrado ao mundo humano. Não que não haja mais jogos – ou festas e
danças, também concebidas originalmente como práticas anuladoras da separação –
no contexto contemporâneo. Mas é que, naqueles que hoje existem – os “jogos
televisivos de massa”, por exemplo – o objetivo realizado é apenas a
instauração de uma nova liturgia, que seculariza por um breve momento o que nas
situações diárias é considerado como objeto de culto e reverência. Mas
secularização, adverte o filósofo, é diferente de profanação.
“A secularização é uma forma de remoção que mantém
intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a
secularização política de conceitos teológicos (…) limita-se a transmutar a
monarquia celeste em monarquia terrena, deixando intacto, porém, o seu poder. A
profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois
de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e
acaba restituído ao uso.” (ibid., 68)
A secularização, portanto, muda de lugar um elemento no
interior de um determinado sistema de relações que permanece, por sua vez,
intacto. A profanação, ao contrário, desativa esse sistema. É por isso que é a
profanação, e não a secularização, que deve ser perseguida por aqueles que não
querem se deixar aprisionar pelo culto culpabilizador (e desesperador!) da
religião capitalista.
O capitalismo, diz Agamben, generaliza e absolutiza o
princípio definidor da religião. Em todos os âmbitos da atividade humana
pode-se verificar o processo multiforme de separação que o sistema implementa.
É interessante observar, nesse contexto, como o filósofo italiano aproxima tal
fenômeno do fetichismo da mercadoria de que falava Marx. Conforme suas
palavras:
“Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a
pura forma de separação, sem mais nada a separar. Uma profanação absoluta e sem
resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E
como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se
distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche
inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o
corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido
por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma
divisão substancial e na qual todo uso [no sentido de profanação] se torna
duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo.” (ibid., 71. Grifos nossos)
Portanto, tudo que é feito, produzido e vivido torna-se
mercadoria – tudo é interiormente cindido. A existência social como um todo
divide-se e o consumo passa a ser a esfera onde a consagração das coisas é
consumada. As coisas tornam-se reverenciáveis por si mesmas, sagradas,
veneráveis e acima do universo do humano.
Qual a alternativa? Fazer outro uso das coisas, diz o
filósofo: estabelecer uma forma de relacionamento social que elimine a separação
instaurada pelo capitalismo e que restitua ao domínio humano o que o sistema
aliena para o plano do sagrado. Numa palavra, é preciso profanar.
“A profanação do Improfanável é a tarefa política da
geração que vem”, assevera Agamben, sem hesitação. Se estiver certo, as
revoluções do século XXI deverão ter um caráter profundamente lúdico e
profanatório.
Estes os
pensares dos que costumam buscar imortalidades em “tábuas rasas”, coisas ou
inven-
ções que amiúde vêem sendo escritas e raspadas sobre a mesma cera das
presunções humaas do saber. São coisas que venho aturando ante o fastio do que
é a capacidade humana para divergir daquilo que realmente interessa; do que é
imutável e da autoria Daquele que é desde sempre e para sempre.
Benjamin e
os palradores que o sucederam – e sempre sucederão - não falaram sobre as
Palavras Eternas, que registram com sua singular simplicidade o que se lê em 1
Timóteo 6:10: “Porque o amor do dinheiro é raiz de
todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram
com muitas dores.”
A "profanação do improfanável", como Agamben "conclui sem hesitação", para mim é tarefa político-religiosa que não está por vir, mas que acontece desde as barbáries cometidas contra os "Heróis e Mártires", desde o primeiro século do cristianismo.
Se contar com o inhteresse de meus leitors e seguidoires por este importante assunto, começarei e continuarei com as histórias desses heróis e mártires, transcrevendo uma obra que herdei de meu pai que, por sua vez, na década de quarenta herdou-a da biblioteca do Rev. Alberto Augusto, pastor, teólogo e latinista. Essa obra a que me refiro foi editada em 1917 por Juan C. Vareto, profundo pesquisador dos documentos históricos qque datam do século III.
Juntamente com a reedição do texto: "Heróis e Mártires", oferecerei também pareceres embasados em minha própria erudição.
Carlos Mendes
Referências: Agamben, Giorgio.
Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
GIORGIO AGAMBEN: POLÍTICA DA PROFANAÇÃO
VERSUS RELIGIÃO DO CONSUMO, pelo viés do colaborador Demétrio Cherobini*
*Demétrio Cherobini é Cientista social,
mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina.
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