quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Roteiro de um novo romance

        Meus amigos e apreciadores de histórias romanescas.
        Apresento-lhes roteiro do novo romance que estarei trabalhando a partir do final deste ano, se Deus o permitir.

Carlos Mendes
10 de outubro/2013

Introdução


381 DIAS DE SAUDADE, VINHO, MULHER E GUERRA
                                                           Carlos Mendes

        Acabo de ler o Diário de um Expedicionário e por ora só atribuirei ao sujeito da autoria a designação “Expedicionário”.
        É, com certeza, um projeto literário que oferece à leitura duas oportunidades a quem o escreveu: ser a memória póstuma dele mesmo, provável expedicionário tombado em combate, ou então uma declaração jubilosa num “Gran Finale”  apoteótico que se prestaria a saudar o final da 2ª Grande Guerra Mundial, o que o seu autor acaba construindo antes de escrever o entusiástico “FIM” com letras maiúsculas, negritas e garrafais, antecedidas pelas palavras: “Chegamos aqui no Rio de Janeiro no dia 18 de julho de 1945. Então fechei para sempre o meu diário”.
        Nesta nota de encerramento, escapa o alívio da tensão opressiva que subjugou o expedicionário durante todo o tempo em que permaneceu em combate, sob o clamor de uma esperança que o Hino do Expedicionário lhe ensinara: “Não permita Deus que eu morra, sem que eu volte para lá”.
        A priori e sem o detido exame de escritor desafiado a pinçar as muitas cenas onde imperaram as tensões da alma do expedicionário, ao fazer aflorar o drama íntimo que ele viveu, poucas coisas me são permitidas adiantar sobre o muito que o diário pode oferecer às especulações de um Roteiro de Literatura, tarefa que certamente não alcancei totalmente. Mas eis o que posso escrever no momento:
        A temporalidade histórica do “Diário de um Expedicionário” é chocante!
        Ribeirão Pires, 15 de fevereiro de 2005.

Roteiro

        Ainda não conseguiria dizer se existem originalidades neste “Diário de um Expedicionário”, que acabo de ler. Por indicação de um funcionário da Livraria Cultura, visitei um site por ele recomendado e descobri que existem muitas obras escritas por ex-pracinhas da FEB, publicadas pela editora e, entre essas obras, um grande número de diários, tudo disponível na livraria. Se não indicar as costumeiras práticas comerciais inescrupulosas de editores, a informação será alvissareira[1].
        O estilo do diário já fazia supor a existência de muitas outras obras do gênero. Nele eu li registros que devem ser próprios do tensivo foco narrativo de obras do mesmo gênero, e creio mesmo que foram muitos os pracinhas que se entregaram a essas anotações sistemáticas dos fatos rotineiros na vida dos combatentes que se enfrentaram em terras européias, e isto desde o primeiro dia em que ocorreu o traumático recrutamento e durante todos os 7 ou 8 anos de duração da 2ª Grande Guerra Mundial.
        Mas posso aventurar-me a localizar pelo menos duas originalidades no trabalho literário do Diário que eu li. Primeira, o estilo poético que consegue tocar profundamente a nossa sensibilidade artística, e, segunda, a evidência de uma persistência linear no espaço e no tempo, sem hiatos entre os registros dos fatos que fazem nele despontar uma percepção aguda da elevada possibilidade do seu autor tombar em combate, o que ele repetidamente comenta diante do que me parece a resignação a que se entregou ao afirmar diversas vezes: “A guerra é assim mesmo” e ela se ganha com o cumprimento do dever cívico do cidadão; da necessidade que ele sente de conviver com o mais agudo desconforto pessoal e com o resignado destemor perante a morte, pois cumpre ser corajoso diante disso tudo, já que nos dois lados do fronte campeiam os mesmos horrores do trágico fim a que os combatentes estão sujeitos . Por isso convém rezar para que a vitória lhe seja dada, pois se a recebe, recebe-a em vida.
        O diário é um registro linear e sistemático de fatos que colocam o Expedicionário na tênue esperança de voltar para a pátria amada, sentimento toldado pela angústia do forte sentimento contraditório: “Acho que não voltarei”, o que o leva a rezar para voltar entre os vitoriosos, como lhe ensinava a letra do Hino do Expedicionário: “Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá (...)”.
        E a capacidade de passar ao leitor as suas incertezas incomodantes e angustiantes, me parece, portanto, a grande originalidade do autor, o que confirma a convicção de ter feito a leitura de estados emocionais que a capacidade de ser poeta introjeta no leitor como uma identificação de objeto com os estados psicológicos do autor.
        Outro destaque a nomear é a técnica dos registros em alinhamentos cronológicos e sistemáticos dos fatos pontuais do Diário. Ela nos ajuda a deduzir o que deve haver de particularidades adotadas na esquematização de um longo período de preparação e treinamento dos combatentes até a culminância do ser combatente preparado para enfrentar o “batismo de fogo” numa 1ª linha de combate, metaforicamente o “ver a cobra fumar” alusiva à bandeira dos expedicionários brasileiros. E isto o Expedicionário faz sem entrar em detalhes daquilo que talvez nem conhecia tecnicamente. Talvez, sem o pressentir, ele entrou no esquema do que Jhon Rawis entende por “véu da ignorância” e foi colocado na posição de peça de combate sem conhecer essa posição que assume na vida real. E da maneira como escreveu, o Expedicionário nos faz caminhar passo a passo com ele até nos inserir na guerra como combatentes sujeitos às mesmas vicissitudes psicológicas que ele enfrentou pessoalmente.
        Talvez o combatente tenha sido preparado para a missão guerreira diante do véu da ignorância. Vem em primeiro lugar o reconhecimento de que “a pátria é a própria família, amplificada”, como Rui Barbosa já propusera no século 19. Então salvar a pátria é fazê-lo em nome do amor à família, fato é que em todas as guerras o recrutamento de recursos humano se dá no seio de famílias estáveis, donde o apelo do Expedicionário à conformação da estremecida mãe que tivera o seu filho escolhido para a missão patriótica. Durante o tempo que mediou entre a escolha em 1941 e o embarque em 1944, há uma prolongada preparação militar; há a conquista de uma noiva, talvez um símbolo de prêmio antecipado e de honraria nunca dantes sonhada, pois, afinal, é um expedicionário brasileiro e vai fazer parte de uma força que se propõe resolver um conflito armado por um louco que desejou conquistar o mundo todo.
        Durante a viajem há anotações que nos dão conta de uma tensão crescente que é evidenciada por uma solidão pessoal interior, da qual as imensidões do mar e do céu são dissertações paradoxais do que até ali entendia por seu mundo particular, íntimo e afetivo. Ele conta os dias; adianta o relógio para situar-se nos novos fusos horários; reconhece-se diante de uma trilha nunca dantes percorrida e essas tensões eu entendo como um novo e cruel condicionamento psicológico do combatente que, assim, vai tendo cortado o cordão umbilical que o liga à pátria, à mãe, à família e à noiva, das quais se apartou sem dar-lhes notícias (?). Há uma hipérbole na idéia impactante de um lugar neutro onde o Expedicionário se internará por tempo limitado e que terminará com a sua volta ou com a sua morte: a guerra.
        As distâncias são contadas do local onde ele se encontra para o destino a que o leva a sorte incerta e esta contagem aumenta a tensão e produz suspense em quem lê o diário. A sua nuca está voltada para a pátria, tão presente na recordação quanto o campo de batalha está no objetivo, pois é necessário estar logo nessa guerra para saber logo se sairá dela com vida: “Mal se chega à festa e logo se fala em voltar”, registra o expedicionário a sua aguda expectativa.
        A chegada a Nápoles coloca-o na região do conflito. Mas essa sensação de desconforto é atenuada pela distância a cobrir até as regiões onde as escaramuças estão acontecendo. Já próximo do fim da guerra, quando o inimigo enfraquecido contrai o seu campo de luta pela retirada dos seus efetivos, é que o Expedicionário começa a “ver a cobra fumar”, e então ele registra no seu diário a capitulação de um soldado alemão acossado pela fome, dando-nos conta das trágicas conseqüências da belicosidade de Hitler, figura de tantos outros loucos tiranos anteriores e posteriores a ele.
        Mas o Expedicionário está um pouco adiante de Nápoles, apenas adentrando a área do conflito e assentado em seu primeiro acampamento onde a “vida boa” é creditada ao vinho e às italianas. Registra então uma primeira notícia preocupante: Nápoles acabara de ser bombardeada. “Escapamos por pouco” escreve ele, talvez fazendo o registro de uma notícia que outros soldados escreveram nos seus próprios diários bem antes dele... Conjeturo se não seria esta uma estratégia psicológica usada no preparo das novas forças que seguiam para as linhas de combate e que ainda treinavam para o cruento enfrentamento. Aprendendo a matar, os pracinhas brasileiros também eram preparados para morrer.
        Para mim, o Diário do Expedicionário revela o véu da ignorância como pedra de toque no preparo dos combatentes. Afinal, são poucos os marechais e generais deste mundo louco a nos enfiarem nessas atrocidades chamadas de guerra, absurdos contra-sensos em forma de terrorismo e de conflitos outros que nos são dados enfrentar por causa da nossa incapacidade de construir paz duradoura. O Expedicionário, talvez sem o saber ou talvez por suprema elevação de espírito, desvenda a face cruel desses planejamentos nos altos gabinetes políticos, que só pudemos conhecer pelos seus registros carregados daquela gravidade que deveria governar as atitudes dos homens. Afinal, nascemos entre humanos e não entre bestas-feras, penso eu lendo as páginas do “Diário de um Expedicionário”, o que me parece o relato íntimo do drama psicológico que todos os combatentes enfrentam.
        Voltando às distâncias, ao correr do tempo, registros feitos com modéstia no Diário do Expedicionário, com aquela modéstia dos simples amontoados de documentos, por oposição ao trabalho de sistematização, como Aristóteles já o preferia nos estudos historiográficos, conjeturo sobre a arte de fazer guerra envolvendo nela “os outros que não eu”.
Conheci que os soldados eram colocados na frente de batalha e, se dela voltavam, ficavam algum tempo gozando a “vida boa”. Em todas as frentes. Em todos os agrupamentos, fossem os quatro homens do Expedicionário, fossem os dois sargentos, e assim por diante até aos oficiais que operacionalizavam as técnicas da guerra no campo de batalha. Os navios chegavam constantemente carregados de combatentes e isto durante todo o tempo em que a guerra durou, e no registro deste fato o Expedicionário abre a janela de sua alma e nos faz espreitar o que nela está inscrito sobre isto. Os navios traziam constantemente peças humanas de reposição para o seguimento do combate. “A vida boa” é um fato sem comentário adicional do guerreiro e escritor que, na solitude da alma é mais este do que aquele. Não declara a “vida boa” como o faria o psicólogo. Numa elevação de espírito própria de um poeta, o combatente não esclarece a conclusão como aquele o faria. Subliminarmente ele nos permite a passagem entre ela e o combate, e como poeta transmite a misteriosa comunicação, inscrevendo-a na alma do leitor que descobre nesse viés culto a “vida boa” como o ópio dos guerreiros. O Expedicionário me fez lembrar do prêmio consentido por Maomé aos seus guerreiros, deixando-os se apropriarem de vinte por cento dos despojos das nações vencidas, ópio dos cobiçosos!...
        A “vida boa” do Expedicionário resumia-se ao vinho italiano, que no Brasil jamais bebera com tanta regularidade, e as italianas. No vinho ele encontrava a embriaguez que anuviava as lembranças que ele justificou no discurso final do seu diário: “Procurem compreender-me”, proêmio do poema “Sorrisos”, que escreveu como apêndice. Eu creio que ele queria ser percebido desta e daquela forma e só Deus saberá se assim lhe fizeram ou não. Compungido eu aprendi que a guerra produz marcas profundas na alma dos combatentes e bem pode a mente construir o purgatório das culpas de responsabilidades assumidas em nome de uma mera construção histórica chamada sociedade humana.
        O “Diário de um Expedicionário” merece um Roteiro de Literatura mais extenso, que favoreça outras múltiplas leituras presentes no seu texto.

Carlos Mendes
Escritor e poeta. Autor de romances, tais como: “O Milênio e o Tempo”, “Os Pregnantes”e “Observatório do Inferno”




[1] Posteriormente este autor fez sua pesquisa, pelo que pôde emitir a afirmação feita na introdução.

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