“Mais perdido que tatu na queimada”
Tatu é bicho parcimonioso de presença, maior parte dos solstícios.
Tem duas moradias. Uma, presente da natureza e que, precavido, carrega no lombo.
È preta, quase luzidia, um fole com anéis transversos. Quando corre, nosso vivente tem a direção de fuga denunciada pelo “zum zum” desses anéis queratinosos. A outra casa, produto de seu labor, fica quase sempre em pequenos monchões, sombreados por presenças arbustivas e arbóreas, “caponetes”, diz o nativo. Ou ainda, na órlea de caapões e cordilheiras, de onde sai para as vazantes em atenta e laboriosa busca de sustento. Na cheias normais, sua loca está a salvo das águas. Nela, convive com jararacas e bocas-de-sapo.
“Tatu-prêto”, “tatu galinha”: sua denominação trai sua cor e a semelhança do sabor de sua carne com a de nossos conhecidos galináceos. Parece que o grande recurso de sobrevida de nosso simpático vivente seja o faro: é com o nariz que sonda a aproximação intrusa, suspeitosa, de qualquer que o seja.
Chegando maio, junho, é época de tatu festar. Desentoca, anda, fareja, enlota, reproduz. Peão, volta e meia, acerta o cabo do piraín, relho, ou guacha na cabeça de um e leva a iguaria para a casa. Ruína de um, festa de outro. Coisa do mundo.
Mas não há mal que sempre dure e bem que não se acabe. Agosto chega e, com ele, encosta a sequidão na grande Planície Pantaneira. Volumosos, fartos, o sapé, o fura bucho, o “capim carona” que guarda óleo em suas securas, são combustíveis de primeira. Na esteira da estiagem, crepita o fogo, que estende seu ardente manto vermelho sobre o marrom da sequidão extensa. Quanto mais seco e alto o capim, maior o incêndio. O Gavião Fumaça surge, faceiro, estridente, campeando por dentre os rolos de fumaça, pequenos roedores e cobras, sapecados pelo fogo. Se crú é bom, que dirá assado. Rápido, tudo cessa, restando a fumaça, que desaparece em dias, enquanto o verde ressurge, pois as labaredas acordam as sementes do Cerrado.
Por dentre o campo limpo, entre cinzas, comendo raízes cozidas, perambula o tatu. Mas, seu esperto anda-pára-farejante, está rengo. A fumaça lhe oblitera as narinas, e nosso vivente diminui sua habilidade de fuga. Ao suspeitar de qualquer intruso, ou pressentir ameaça, fica em pé, farejando, olhinhos miúdos, deficientes, com as mãos erguidas, próximas ao pescoço. Nessa circunstância, presa fácil do que quer que seja. Peão faz leitura: perdido, bobo, até reza antes de morrer.
Por isso se diz, em prosa de galpão, quando alguém perde o rumo, prumo, o padrinho ou o estribo: “tá mais perdido que tatu na queimada”.
Valfrido Medeiros Chaves –Pantaneiro, Psicanalista
15.01.2003
Fazemos votos que o Valfrido, nosso grande amigo, intelectual e colaborador desde 1992 continue a postar suas crônicas e/ou artigos em nosso blog
Saludos, amigo Valcfrido.
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