sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Conto: "Coração Misterioso"

Coração Misterioso

                           Carlos Mendes


“Do homem são as preparações do coração, mas a resposta certa dos lábios vem do Senhor”. - (Provérbios 16.1

No dia do pagamento e depois da hora que largava do serviço, podiam ir procurá-lo no bar do Cascadura, que tinha de tudo para a diversão dos homens sem compromisso, como costumavam se gabar os solteiros, coisa que ele não era já há dez anos.
            Certa vez o Gonçalves arribou-se ao grupo dos companheiros que freqüentavam o bar. Era funcionário categorizado no escritório do engenheiro chefe do setor onde ele e os seus companheiros trabalhavam. Foi na hora da saída, antes de passarem pela seção do pessoal para receberem o salário do mês que o novato foi apresentado aos demais companheiros. Quando Trajano se adiantou para dar-lhe as boas-vindas, percebeu a mudança da atitude investigante para a da análise crítica que parecia não se ter agradado do resultado da investigação. A aliança na mão esquerda foi percebida pelo novato que perguntou para o Serpião, que fazia as apresentações:
    Mas a noitada não é só para solteiros?
    O que é que há, seu bestalhão – foi logo respondendo o Trajano diante do petulante almofadinha – o que vai rolar não é o meu dinheiro?
Serpião e os demais se divertiram vendo a cena e adivinhando o que podia resultar para o Trajano caso se enganasse com a aparência do burocrata empertigado. Percebendo a expectativa velada nos olhos dos companheiros juntando-se à atitude confiante do novato, Trajano serenou o seu ânimo agressivo. Procurou disfarçar os seus receios mas ao Osvaldo agradou ir adiante, agravando sua reprovação com uma atitude provocativa.
    E tens, por acaso, o direito de fazer o teu dinheiro rolar só contigo?
Trajano colocou-se à deriva do grupo e apressou o passo em direção ao departamento do pessoal. “Meleca de almofadinha”, pensou, humilhado pelas lembranças das obrigações familiares negligenciadas. “Cara metido a besta esse burocrata. Por que tinha de freqüentar o meio do pessoal técnico?”, perguntou-se diante do duplo motivo que o compelia a imitar o sentimento de “apartheid” que o Gonçalves tinha acabado de revelar por ele. Mas essa identidade só existia na forma pois, dentro dos padrões morais correntes, a reprovação do Gonçalves podia ser considerada de procedência legítima. A consideração mais incômoda estava ligada ao sentimento de culpa, ferida que  Gonçalves tinha deixado a descoberto. “O que é que ele entende da vida de casado?”. Chutou violentamente uma pedra sobre o caminho asfaltado que o levava ao departamento do pessoal e ela ricocheteou no meio fio e foi atingir um dos holofotes que à noite iluminava uma fonte próxima da portaria onde dois guardas faziam a segurança, geralmente recolhidos na guarita. Barulhenta, a pedrada espatifou o vidro do holofote e um dos guardas deixou a guarita para interromper a marcha furiosa do Trajano.
    O que deu em você, Trajano? – perguntou o guarda com severidade.
Trajano respondeu com uma desajeitada explicação em tom amistoso, mas o colega da segurança não parecia nada animado a corresponder àquele arremedo de colóquio amigável. Disse que não tinha nada que ver com o problema entre ele e o Osvaldo e que ia denunciá-lo formalmente. Que se dirigisse para a guarita, pois ia lavrar um relatório que ele tinha de assinar. Trajano argumentou que aquele holofote devia ser muito caro; que não fizesse isso com ele; que tinha família para sustentar. Ele não podia alegar que o maldito holofote havia estourado à noite devido a um choque térmico provocado pela chuva? Ficou vermelho pelo desplante da justificativa. Na verdade todo aquele argumento tinha a preocupação de preservar a parcela do salário que estimava gastar na aguardada noitada e não agravar ainda mais a parcela do salário que entregava para a mulher administrar o orçamento doméstico, onde as maiores despesas se relacionavam com o seu hábito de tomar cerveja e comer petiscos enquanto assistia a programação da televisão, maior parte das vezes com colegas que pastavam com ele as mesmas iguarias.

Não teve jeito. O relatório foi feito pelo guarda que teve até de ameaçá-lo com uma ocorrência policial se não começasse a se comportar respeitosamente. Obrigações de serviço não podiam ser misturadas com amizade, e “fim de papo, tá?” – concluiu o guarda impondo-lhe a sua autoridade.   
 Naquele final de tarde entrou sozinho no bar do Cascadura, pediu uma garrafa do uísque mais caro, mandou enfiá-la num cartucho e foi convidar uma garçonete ainda muito jovem para ficar com ele. “Não iria gastar aquela noite com o boboca do Osvaldo e os companheiros de sempre, que não mereciam mais a sua estima pelo que lhe aprontaram. A partir daquele dia ia partir para as brincadeiras sexuais, para onde o intrometido do Osvaldo o havia impelido”, terminou ele os arrazoados com que tentava desculpar a nova compulsão.
Saindo do bar começou a caminhar ao lado da quase adolescente garçonete, braço direito passado em seus ombros e a mão esquerda segurando o cartucho com o litro do uísque debaixo do braço.
A indústria onde trabalhava não ficava muito longe do centro da cidade. Lembrava-se de que ali existia um motel onde podia passar a noite com a garçonete. Para chegar lá ele precisava atravessar uma praça e naquele dia estava reunido nela um grupo de pessoas que ouviam atentamente a pregação de um jovem bem vestido, a quem rodeavam. “Ufa, que dia mais sem graça! Só lhe faltavam os “Bíblias”, resmungou Trajano e teve de explicar para a sua acompanhante quem eles eram. Depois da explicação ela lhe perguntou o por que do incômodo e ele sentiu a ebulição da própria consciência.
    Adúlteros e adúlteras, não sabeis vós que a amizade do mundo é inimizade contra Deus?
Trajano estacou a caminhada, olhando assustado para o pregador que formulara a sinistra questão em alto brado. Olhou para ele, que parecia estar olhando fixamente para si. Estufou o peito e fez um sinal como a perguntar: - É para mim?
    Se o teu coração te condena, sabe que Deus é maior do que o teu coração – Prosseguiu o pregador circulando o olhar ao redor.
Voltaram a caminhar tão logo a isso Trajano se decidiu. A jovem atendia a todas as suas decisões, sorriso alienado e dócil estampado no rosto de menina. Ponderando sobre o sentido da sua vida, ele considerou o rumo que lhe dera. Era quarentão já fazia dois anos, tinha mulher de quem se agradava e que o estava esperando em casa, juntamente com o casal de filhos que possuíam. Sentiu náuseas, olhou para a jovem ao seu lado e, horrorizado pelo reconhecimento de que ela podia ser sua filha, tirou o braço de sobre os seus ombros. O sorriso de ânimo ausente deixou o rosto da jovem. Mais experiente do que alguém podia esperar de menina com aparência tão cândida, ela perguntou que bicho o tinha mordido. A atitude agora era de quem se dispunha fazer valer o tácito compromisso de quem a convidara para a empreitada.
Trajano sabia que lhe bastava enfiar a mão no bolso e sacar dele duas notas de dez para se livrar da companhia que se tornara incomodante. Foi o que fez e deu-lhe também a garrafa com o uísque que ela, olhar de cândida alienação voltando ao rosto, lhe pediu.
Trajano se lembrou da igreja que a mãe freqüentava, carola que assistia por penitência todas as missas rezadas às dezoito horas, devota que era da “Cidinha”, como assim havia ele aprendido com alguns colegas “Bíblias” a chamar a santa de devoção da sua mãe. Encheu-se de superstições e achou que devia ir desagravar a santa para livrar a consciência da opressão em que se encontrava. Pegou um ônibus que depois de hora e meia o deixou próximo da igreja onde sua mãe costumava ir às rezas. Na caminhada passou por uma rua com casas construídas de meação com outras e fachada à face da rua, formando uma longa fileira. Já próximo de uma que estava com a janela da frente aberta para a rua ele ouviu o refrão do que lhe parecia um dos hinos que os “Bíblias” cantavam.
    “Vem Senhor Jesus, Libertador, por sua infinita graça dar perdão ao pecador”.
Com o coração apertado ele se voltou para empreender caminhada de volta, pois não lhe parecia apropriada a devoção que buscava. Tinha encontrado ali defronte àquela janela iluminada o objeto de uma devoção libertária. Começou a caminhar com a pressa que levam todos quantos se dirigem para um alvo que devem alcançar rapidamente, até chegar no ponto do ônibus que o levaria ao local que, ardente, se fixara na sua mente. A todo instante olhava para o relógio. Pegou o ônibus e no ponto da rua comprida que subia na direção da sua casa ele desceu e começou a caminhar, passo apressado e olhar no relógio. Já próximo do local que demandava ouviu o som de muitas vozes cantando. “Graças a Deus!”, pensou ele agradecido por ter-se confirmado o dia e horário em que a pequena igreja celebrava um dos seus cultos semanais. Entrou na igreja que estava agora orando de joelhos prostrados no chão duro de cimento rústico. Dirigiu-se para um lugar vazio num dos bancos. Ressoava em sua mente o refrão ao qual se apegara:
      “Vem, Senhor Jesus, Libertador! por sua infinita Graça, dar perdão ao pecador.(1)


(1) Refrão da canção: "Coração Misterioso", com letra e musica compostas pelo autor deste Conto Ligeiro"

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